Por Ana Vladia Cruz, psicóloga e integrante do Comitê Cearense pela
Desmilitarização da Polícia e da Política
Este
mês ocorreu mais uma rebelião no Centro Educacional São Miguel. Não é a
primeira do ano entre as unidades socioeducativas de privação de liberdade e,
possivelmente, não será a última. Em 2014 foram pelo menos 30 as rebeliões
registradas. O Sistema está sucateado, superlotado e sem a mínima condição de
garantir os direitos mais elementares de adolescentes e funcionários, a exemplo
da saúde e da integridade física. Ainda mais grave: as unidades – idealizadas
para a socioeducação de adolescentes que entraram em conflito com a lei através
do acompanhamento com equipe multiprofissional e do acesso à educação, profissionalização,
esportes, lazer e cultura – tornaram-se locais de tortura sistemática. Não se
trata de um apelo retórico: é de sofrimento e dor, infligidos de forma
deliberada, a que nos referimos. São casos de espancamentos, estupro, dopagem
coletiva e isolamento compulsório ilegal – práticas de sanção disciplinar que
estimulam a violência e a intolerância, geram marcas psicológicas e comprometem
o desenvolvimento do adolescente e as relações dentro do espaço institucional.
Na
mais recente visita realizada ao Centro, dia 26, foram encontradas marcas de
sangue na cela de isolamento (conhecida como tranca), medicamentos vencidos e
seringas utilizadas guardadas em gavetas, indicando a possível reutilização do
material. No início do mês, a ANCED, o CEDECA e o Fórum DCA denunciaram à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos as mais diversas violações à que
estavam sujeitos os adolescentes nestas unidades. Além dos casos de tortura e
maus tratos, a petição ressaltou a interdição de três das unidades por superlotação
que superavam em 400% o número de vagas; a ausência de aulas e atividades
profissionalizantes; as equipes insuficientes e deficitárias, em precárias
condições de trabalho; e a suspensão das visitas. Em 2009, o CEDECA já havia
ingressado com Ação Civil Pública requerendo providências com relação à
execução da medida de privação de liberdade; e em 2014 o Fórum DCA publicou o
mais recente dos sistemáticos relatórios de Monitoramento do Sistema
Socioeducativo, abrangendo ainda a Liberdade Assistida e o Sistema de Justiça.
Não se pode afirmar, portanto, que o Executivo não sabia da violência cotidiana
nos Centros Educacionais e das inúmeras deficiências e ilegalidades em todo o
sistema de atendimento relacionado à justiça juvenil. Quanto ao judiciário, a banalização
das medidas restritivas ou privativas de liberdade, em consonância com a
condição concreta em que estas medidas são efetivadas, nos levam a crer que a
redução da maioridade penal, esta ideologia criminal da intolerância que ganha
força e voz na Câmara dos Deputados, infelizmente já é uma realidade no Ceará.
Aonde
isso nos levará, é difícil prever. Mas é certo que não é um bom caminho. As
relações consolidadas nestes espaços não contribuem para uma ressignificação
positiva da vida mas, muito pelo contrário, ensinam a banalização da violência
e da humilhação, a conquista do respeito pela força e pela barganha e a
consolidação da dita “carreira do crime”. Propostas de encarceramento possuem
forte impacto eleitoral, mas são inócuas quanto à redução da conflitualidade
social. Nenhum país que apostou na redução obteve êxito na diminuição da
violência de rua e, muito menos, da de colarinho branco. Nacionalmente, as
taxas de reincidência nas penitenciárias estão em torno de 70%, enquanto no
sistema socioeducativo constam abaixo de 20%.
A
Liberdade Assistida, medida em meio aberto que deveria ser prioritária e que
possui estatisticamente melhores resultados ao primar pela convivência e o
acompanhamento familiar e comunitário, tampouco se encontra em boa situação.
Dentre os CREAS pesquisados no Monitoramento, cada técnico atende a uma média
de 45,8 socioeducandos, enquanto o determinado pelo SINASE é de, no máximo, 20
adolescentes por profissional. Os acompanhamentos ocorrem, na maioria dos
casos, de forma mensal, fato que inviabiliza o real cumprimento do PIA (Plano
Individual de Atendimento).
O
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE) são importantes marcos na garantia dos direitos humanos
de crianças e adolescentes. Em oposição à histórica cisão entre crianças e
“menores”, a legislação pretende garantir a todo segmento, com absoluta
prioridade, as condições de liberdade e de dignidade para seu desenvolvimento
físico, mental, moral e social, salvaguardando-a de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Existe,
no entanto, um verdadeiro abismo entre os enunciados legais e a realidade. Em
Fortaleza, o Índice de Homicídios na Adolescência chega a 9,92 para cada grupo
de mil adolescentes – a pior posição em todo o país. Significa que, caso não
haja nenhuma mudança no contexto de violência que atinge a esta população, para
cada grupo de mil adolescentes que hoje possuem 12 anos, 10 não chegarão a
completar a maioridade, pois serão assassinados. A explosão da violência que
vitima letalmente nossa juventude é estarrecedora: o Ceará alcançou, em 2012, a
marca de 94,6 homicídios por cem mil jovens, quando em 2002 este índice era de
34,2. Considerando apenas a Capital, o número proporcional de vítimas salta de
59,9 para 176,6 no mesmo intervalo de dez anos. Em 2013, foram mais de 12 mil
as denúncias recebidas pelo Disque 100, sendo 1363 relativas a violência sexual
envolvendo crianças e adolescentes.
Em
que pese todo o incremento da violência contra adolescentes, o debate massivo
diz não de sua condição de vulnerabilidade e ausência de direitos, mas do apelo
ao seu aprisionamento. Assim, adiciona-se os estigmas às grades de ferro –
jovens negros e da periferia são considerados potencialmente perigosos,
“elementos suspeitos” – e segue-se criminalizando nossa juventude através do
incentivo à militarização da Questão Social, o hiperencarceramento e a ocupação
policial dos bairros populares.
Adolescentes
a partir dos 12 anos já são responsabilizados pelos seus atos e podem cumprir
até 9 anos de medida socioeducativa. Antes, portanto, da redução, é preciso
cumprir o ECA e o SINASE. Inchar o falido sistema penal sem cumprir os
requisitos básicos da socioeducação é assumir a total incompetência do Estado
na garantia dos direitos mais elementares.
Diante
deste quadro, precisamos defender o óbvio: prisão não desfaz desigualdade
social e tortura não educa. Enquanto apostarmos no recrudescimento do Estado
Penal e Policial para enfrentarmos os desdobramentos da desigualdade e da falta
de acesso aos direitos, contribuiremos com a violência que gostaríamos de
combater.
Fonte da Informação
Texto publicado no site https://desmilitarizar.wordpress.com/