domingo, 16 de outubro de 2011


Devotos renovam a esperança em Canindé

Publicado em 16 de outubro de 2011 
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Durante todo o ano, fiéis de vários estados brasileiros chegam em Canindé para agradecer pela graça alcançada. A fé depositada em São Francisco é o que os move
FOTOS: ANTÔNIO CARLOS ALVES
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Romeiro Francisco Tavares de Sousa, do Maranhão, veio deixar uma perna de madeira em agradecimento pela cura. Ele sofreu um acidente de moto e corria o risco de ficar sem o membro inferior
Muitos dos romeiros têm suas vidas marcadas pelo sofrimento. Em Canindé, buscam o apoio de São Francisco
Canindé Pelas veredas mais tortuosas da vida, tropeçando às vezes na própria desilusão, os romeiros chegam à cidade de Canindé. Na bagagem, um coração vazio de si, na expectativa de se renovar pelo contato com o divino. Nas mãos trazem um ex-voto, símbolo de gratidão e a memória de uma identidade. Na voz, orações se elevam em direção ao sagrado, daquele que foi tão pobre quanto eles. No olhar, uma saudade imensa e renitente sai pelas bordas dos olhos muitas das vezes cheios de lágrimas.

Passos brandos na vasta poeira do tempo trilham caminhos envoltos no mistério, enveredados pela fé sem limites que cada um deposita em São Francisco.

Corpos crestados, próximos aos mandacarus, pisam quais vultos num solo riscado pela seca, sem mapas, nem mundo ou chão. Assim seguem os romeiros pagadores de promessas, levando sua reverência a São Francisco das Chagas. Não comunicam desalento, nem cansaço, pois são impedidos e amparados pelo santo. Devotos numerosos aí se encontram, peregrinos de todas as raças na Meca Nordestina da fé, Canindé.

Entre o culto regular da Igreja Católica e as práticas da religiosidade popular, místicas, crenças, gestos se unem, irrompem em cada alma sedenta do eterno. Para os romeiros não importa o sacrifício, o que vale mesmo é pagar sua promessa e ficar em dia com o santo. Pode demorar 10, 20, 30 anos, mas um dia ele dá um jeito, vem a Canindé e paga. São peregrinos vindos dos mais diversos pontos do mundo, que chegam ao maior santuário franciscano da América Latina em busca da cura por meio da fé.

Cotidiano
Os romeiros e suas histórias se misturam ao cotidiano da cidade. O casal, Francisco da Silva Borges, de 59 anos, e Maria Feitosa Borges, de 52 anos, reside na cidade de Porto Franco, no Maranhão. 

Fizeram uma promessa para São Francisco há 22 anos e agora pagaram. O casal conta que tinha problemas com alcoolismo e se apegou ao santo dos pobres pedindo a cura e libertação do vício. Agora eles chegam ao santuário de Canindé para pagarem suas dívidas.

Olavo Vieira Sousa, de 69 anos, perdeu tudo nas enchentes de 2009 na cidade de Penedo, em Alagoas. Depois de pedir a São Francisco uma graça, veio pagar a promessa. “Na época, perdi minha casa, meus bens e fiquei com uma mão na frente e outra atrás. Agora, trabalho de motorista e já estou reconstruindo o que eu tinha aos poucos, graças a meu São Francisco”.

A graça alcançada pelo casal, Vicente de Sousa Felizardo, de 58 anos, e Maria Lúcia Machado Felizardo, de 54 anos, se materializa no ex-voto de uma casa, depositada na Casa dos Milagres, no anexo da Basílica de São Francisco. Moradores de Presidente Dutra, no Maranhão, prometeram fazer uma peregrinação a Canindé se conseguissem realizar o sonho da casa própria. Depois de 23 anos, eles cumprem o prometido.

São depoimentos dessa natureza que ajudam a reforçar a crença no santo dos desvalidos, dos necessitados, daquele que se fez pobre como os mais pobres para ser digno aos olhos de Deus. Com passos firmes, voz cansada, pés rachados pelo contato com a terra batida e o asfalto escaldante, seguem os romeiros em busca do sentido da vida, mediante rezas, confissões e silêncio. Por vezes conduzem uma cruz interior, como imagem da esperança que vence o sofrimento.

Os devotos depositam no santuário suas vidas fragmentadas. Comunicam imagens de si, marcas do abandono social a que muitos estão submetidos. Confiança, só mesmo no santo, que acode e consola os fiéis nos momentos mais difíceis.

Mas a graça também pode ser mais simples. A conquista da pessoa amada e do matrimônio, a aprovação no vestibular, a vitória do time do coração, tudo indiciado pelos vestidos de noiva, fotos de formatura e camisas de times de futebol depositadas na Casa dos Milagres.

Muitos dos romeiros, oriundos dos demais Estados nordestinos, têm suas vidas marcadas pela fome. 

Demonstram sofrimento refletido em seus rostos de uma sensibilidade prematura. Em Canindé, renovam-se e encontram amparo para a fadiga e a desilusão.

A graça que os romeiros rogam a São Francisco deveria ser proporcionada por políticas públicas. Pedem uma casa, a cura de uma doença, melhoria da condição de vida. Enfim, ações que seriam de responsabilidade dos governantes.

Libertação
Para Marcelo João Soares de Oliveira, autor do livro “O Santo vivo dos devotos”, a romaria é uma manifestação de intensa fé que dialoga com Deus. É uma convicção íntima na experiência dos peregrinos, que buscam no sagrado a libertação de seus males. Os andantes comunicam-se de forma profunda pelo sacrifício do trajeto e pela fé que os fortalece na travessia de distâncias. Na transparência de seus passos, as situações mais diversas emergem da dor e da fragilidade. Este clamor tem sido ressoado com freqüência.

Quem visita Canindé como romeiro, procurando no sobrenatural uma esperança, certamente encontrará no homem do segundo milênio pistas para nova vivência: a fraternidade que nasce no meio dos pobres, a paz que é fruto da reconciliação e da tolerância entre classes e nações, a harmonia ecológica que é resultado do respeito e do amor por todas as criaturas.

Costume preservadoEx-votos simbolizam graça alcançada
Depois de conseguir o milagre, os romeiros vão até Canindé com o objeto simbolizando o pedido realizado pelo Santo
De acordo com a bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco no Rio de Janeiro, Lúcia Gaspar, o ex-voto é a designação erudita onde podem ser enquadrados os milagres e promessas. São oferendas feitas aos santos de particular devoção ou especialmente indicados por alguém que obteve uma graça ou milagres implorados, como um testemunho público de gratidão.
Eram muito utilizados na antiguidade Greco-Romana. Embora sua origem seja desconhecida, sabe-se que foi difundido por volta do ano 2000 a. C.

Hábito
O hábito de oferecer ex-votos continua vivo para grande número de fiéis nas diversas camadas da população. Com o advento da fotografia e do ex-voto de cera semi-industrializada, desapareceu a preocupação de apresentar uma obra estética. O ex-voto perdeu em valor artístico, mas não deixou de ter um grande significado como forma de expressão da religiosidade, fé e esperança do povo brasileiro.

Uma pesquisa feita por estudantes da Universidade Federal do Ceará (UFC), nos últimos 11 anos, o total de peças que foram depositadas chega a 216.552. 

As partes mais representadas são os membros inferiores, é a região do corpo humano que tem mais exemplares. Em oito anos foram repertoriados 47.257 ex-votos. 

Cabeça é o órgão cuja representação tem crescido. Foram catalogados 21.997 peças. Para os pesquisadores, é a parte do corpo que mais sofre com as crises que assolam a vida humana. Membro superiores ocupam o terceiro lugar em quantidade, com 14.79. Mama é outro órgão que também tem aumentado proporcionalmente: 10.351.

Outras representações
Também são colocados na Casa dos Milagres ex-votos que representam os mais diversos órgãos, como, por exemplo, coração, útero, órgãos genitais, costelas, tronco, pulmões, coluna vertebral. Outros simbolizam cereais, tijolos e maquetes de casas, casco de animais, certificado de cursos, ingressos em universidades, num total de 24.026. Também centenas de quilos de cabelos e milhares de fotografias. Isso consta que o povo sofrido da região nordestina busca atribuir ao Sagrado a cura que lhe é negada pelos profissionais da saúde pública.

Mensagem
Como lembra o historiador e, também, cientista da religião, Torres Londoño, da experiência de fé do devoto pode-se ter uma dimensão de sua relação com o santo, que não é unicamente contratual. 

Acredita-se, dessa maneira, que os ex-votos, aí incluídos as 216.552 peças – mãos, pernas, cabeças, rins, seios, muletas que foram inventariadas em estudo da Universidade Federal do Ceará (UFC) - são não unicamente o registro de um contrato cumprido, mas uma mensagem clara para todo o mundo de que alguém quis reconhecer que Deus tem abençoado a todos com sua misericórdia.

É nesse mundo simbólico que os devotos conseguem acesso ao santo vivo. Contudo, é preciso ir buscá-lo. Em seguida, é necessário encará-lo e construir um ex-voto que seja veículo para a encarnação e a memória deste encontro.

Fique por dentroTestemunhos
O ex-voto é colocado em local público ou de acesso coletivo e apresenta uma série de formas testemunhais: • Representação iconográfica (pintura ou fotografia) das graças ou milagres obtidos, como ameaça de morte, doenças curadas, perigos evitados, milagres que salvam propriedades de incêndios, secas, enchentes, pragas, dívidas. O bem recuperado é retratado colocando-se numa legenda a narrativa do milagre e a identificação do agraciado; • Representação em forma de escultura retratando normalmente uma doença curada; • Inscrições em tábuas, mármores ou outro material “nobre” do testemunho ou gratidão pela graça alcançada; • Bens como joias, dinheiro, objetos preciosos de uso litúrgico e até igrejas construídas em agradecimento, como é o caso da atual Basílica de São Francisco das Chagas em Canindé; • Elementos simbólicos como velas e flores; • Cruzes usadas em peregrinações; • Representações de casas, edifícios e chaves de carros, acompanhadas de bilhetes referindo-se a aquisição do bem ou sobrevivência em desastres ou acidentes; • Carteiras de cigarros e garrafas de bebidas agradecendo o abandono do vício; • Representação de várias espécies de animais narrando a gratidão do proprietário pela cura do animal ou proteção de grave perigo.

Antônio Carlos AlvesColaborador
Fonte da Informação Jornal DN

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