terça-feira, 30 de agosto de 2011

Três Sintomas de um Governador Despreparado


Felipe Bertoni

A recente greve dos professores da rede estadual de ensino do Ceará abre mais uma ferida e mais um capítulo da gestão conturbada de Cid Gomes como governador do estado. Sua apatia com as demandas da população cearense, combinada com uma demonstração única de desconhecimento da legislação brasileira e descontrole orçamentário, demonstra o despreparo do antigo apadrinhado político de Tasso Jereissati frente à gestão pública no estado do Ceará. Independentemente de orientação política, o desenrolar desta greve mostra um governador perdido, mal orientado e incapaz de fazer uma aparição pública sem causar enorme sentimento de desgosto naqueles que confiaram um segundo mandato ao gestor. Nas próximas linhas, pormenorizo os três sintomas de um governador que, ao julgar pela greve dos professores, não possui competência política para governar o estado do Ceará.

#1 Incompreensão da Lei

A Lei existe e é bom conhecê-la, principalmente quando seu cargo exige. Quem está no jogo político e, principalmente, quem almeja ou possui um cargo executivo, deve pautar suas decisões políticas na melhor e mais fundamentada interpretação da Lei, ou ser bem assessorado por quem possui essa qualidade. O custo de basear suas decisões na vontade pessoal e na má-fé alheia pode ser inexpressivo como passar vergonha (ver Serra em 2010, mostrando desconhecimento sobre o bolsa-família) ou criar problemas graves para a sociedade. É aí que entra Cid Gomes e seus assessores. Sua proposta de elevar em 45% a remuneração do professor em início de carreira, sem dar nenhum benefício para 80% da categoria e mantendo os 20% da carga horária para planejamento das aulas contraria explicitamente direitos claramente definidos pela Lei Nacional do Piso do Magistério, a seguir:

Art. 2o (...)§ 4o Na composição da jornada de trabalho, observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos.

Art. 5o O piso salarial profissional nacional do magistério público da educação básica será atualizado, anualmente, no mês de janeiro, a partir do ano de 2009.

Parágrafo único. A atualização de que trata o caput deste artigo será calculada utilizando-se o mesmo percentual de crescimento do valor anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, definido nacionalmente, nos termos da Lei no 11.494, de 20 de junho de 2007.

A desculpa de Cid Gomes, ao manter os 20% de carga horária reservados ao planejamento das aulas, de que não vai “alterar aquilo que é lei estadual” fere claramente decisão anterior do STF que julga o dispositivo constitucional. Ademais, o STF já havia decidido que a Lei do Piso vale para todo o território nacional, derrotando qualquer argumento para não-aplicação da lei baseado em invasão de competência da Lei estadual. A Lei do Piso foi declarada constitucional em abril, o que destrói as tentativas de manobra pelos governos estaduais através de negociações que diminuam os direitos dos professores. Ir contra a Lei do Piso nessas circunstâncias é um ato de extrema incompetência, pois o professor se vê obrigado a entrar em greve para forçar o governo estadual a cumprir o que lhe é de direito. Esse fato isolado aponta de maneira clara quem é o verdadeiro culpado pela greve do magistério estadual: um governador despreparado para lidar com a legalidade, provavelmente mal assessorado por gente que, agindo de má-fé, elaborou uma proposta ilegal e ofensiva. Se formos analisar qualquer proposta de um governo a uma classe como algo que o governo imagina ser viável (e não alguma manipulação midiática para dizer que os grevistas "não quiseram negociar"), então sua atuação temerária indica um otimismo desconectado da realidade. E talvez essa ausência se dê pela...

#2 Falta de diálogo com a população

Parte da herança maldita da política brasileira está no caráter ainda oligárquico da concentração de poderes. A enorme desigualdade social é criadora de identidades culturais bastante heterogêneas, distantes e que não costumam dialogar entre si. Por conta disso, marqueteiros e publicitários tentam evitar sobrenomes complicados (Alckmin vira Geraldo, Tasso Jereissati vira “o galeguim dozói azul”), mostrar seus políticos conversando e cumprimentando “gente do povo”, comendo acarajé, se jogando no mar de camisa social, entre outras atividades que só exercerão novamente no próximo ano eleitoral. Tudo isso na tentativa brutamonte de diminuir as barreiras culturais durante o sufrágio.

Um político em desespero eleitoral

Mas as diferenças culturais, a imensa barreira que separa os políticos da população, continua aí. A ideia de que aqueles que protestam, exercem pressão, lutam por salários justos e melhores condições de trabalho não passam de gente manipulada pela “oposição”, "insatisfeitos" que gostam de criticar tudo, é sintoma recorrente destes políticos. Ao se negarem a levar demandas populares a sério, se afastam de suas atribuições como mandatários; pior, se afastam da noção de que o poder emana do povo.

Enquanto outros problemas podem explicar o atual piso salarial dos professores da rede pública do estado do Ceará, somente o desdém com estes enquanto categoria e com a população enquanto finalidade do exercício político explica a seguinte declaração de Cid Gomes:

Quem quer dar aula faz isso por gosto, e não pelo salário. Se quer ganhar melhor, pede demissão e vai para o ensino privado.

Quanta apatia. Mesmo que todos os professores da rede estadual fossem motivados pelo valor intrínseco de educar os jovens do estado, é através do salário que alimentam suas famílias, pagam suas contas, buscam lazer e vivem em sociedade, em todos os momentos de suas vidas fora da sala de aula. Um professor é só um professor? Não pode ser um pai, uma mãe, um filho, um marido ou esposa, um irmão ou simplesmente alguém que merece muito mais do que ganha por sua atividade laboral? Um professor é só um professor, uma ferramenta social que pode ser desprezada por políticos? Me impressiona como Cid Gomes conseguiu, com duas frases curtas, não apenas desprezar os professores como profissionais, mas como seres humanos com interesses, angústias, vontades e motivações longe do labor.

Se levarmos em consideração que esse é o mesmo homem que recentemente entrou em residências de moradores no período noturno para defender suas remoções, de modo a construir um VLT na área, com o adendo de seguranças pessoais agredindo moradores, podemos ter uma excelente ideia de como Cid Gomes vem "dialogando" com a população.

Mas enquanto a aparente ignorância quanto à Lei e a falta de diálogo com a população podem explicar algumas dessas atitudes, a continuação da greve sem medidas rápidas por parte do governo estadual mostra que existe um impeditivo maior, algo que mantém a destruição da imagem de Cid Gomes com sua base eleitoral.

#3 Incompetência orçamentária

Parte da argumentação na ADIN enviada por alguns governos estaduais (entre eles, o Ceará), é que a Lei do Piso não leva em consideração o orçamento e a quantidade de trabalhadores em cada estado da federação. Além desse não ser exatamente um argumento para apontar a inconstitucionalidade do que quer que seja, o fato é que a Lei do Piso existe desde 2008 e os governos estaduais tiveram tempo e recursos o suficiente para planejar com suas Secretarias de Estado de Planejamento e Gestão e com a Assembleia Legislativa suas leis orçamentárias anuais, bem como fazer as devidas revisões nos planos plurianuais para adequar o orçamento à nova obrigação legal com os magistrados.

Independentemente de acreditar ou não que a Lei do Piso era inconstitucional (já negado pelo STF) era obrigação do governo do estado, na figura de seus gestores, preparar o orçamento para atender a esta demanda. A demora para respeitar a legislação, enquanto crianças e adolescentes continuam sem escola e professores continuam sem salário, aponta para uma pesada realidade no orçamento público, não apenas do estado do Ceará, mas também dos municípios. O gasto desnecessário (ver: acquário milionário), combinado com o descaso e a incompetência, culminaram na dificuldade em ver o impasse dos salários dos professores ter fim em algum futuro próximo.

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